Bono relembra perda da mãe em biografia; leia capítulo na íntegra

'Surrender: 40 músicas, uma história' foi lançado essa semana no Brasil pela Editora Intrínseca; em capítulo, na íntegra abaixo, cantor narra a vida em família e a morte da mãe, Iris: 'Raramente voltamos a pensar nela'

A relação de Bono com a família e a morte de sua mãe são tratadas pelo próprio cantor, em primeira pessoa, na biografia Surrender: 40 músicas, uma história. Lançada no Brasil pela Intrínseca na última terça-feira, 1º de novembro, o livro de memórias do frontman do U2 é um dos lançamentos mais aguardados da literatura musical em 2022 e traz consigo detalhes sobre ele até então somente esboçados em suas canções.

Escrito ao longo de sete anos, o livro de 640 páginas e tradução de Rogério W. Galindo se divide em 40 capítulos, cada um com o nome de uma música do U2. Em um deles, cedido com exclusividade à Rolling Stone Brasil (na íntegra, ao fim do texto), ele volta à infância em Dublin e às experiência de perda na família.

“Quando comecei a escrever este livro, minha ideia era desenvolver em detalhes coisas que eu havia apenas esboçado nas músicas. As pessoas, lugares e possibilidades em minha vida", escreve Bono sobre a obra. "Surrender é a história de um peregrino com dificuldade de progredir... Com uma boa dose de diversão ao longo do caminho.”

Além do livro, Bono também criou desenhos originais para a obra e uma animação em vídeo, narrada por ele, disponível nas plataformas digitais do U2. O vídeo ilustra um trecho do capítulo "Out of Control", no qual o cantor conta a história da composição da primeira música do U2 em 10 maio de 1978, seu 18º aniversário.

No terceiro capítulo do livro, "De Menino a Bono", que você lê na íntegra abaixo, ele narra os detalhes da vida em família ao lado dos pais, Bob e Iris, e do irmão, Norman. Entre causos e divagações, Bono conta como foi crescer à influência de uma família ao mesmo tempo católica e protestante na sectária Irlanda da década de 1970, bem como à luz dos conflitos que marcaram o país na época. É também ali que ele descreve as primeiras experiências musicais ("Minha mãe só me ouviu cantar em público uma vez") e a perda precoce da mãe e do avô, que mudaria sua vida dali em diante.

Surrender: 40 músicas, uma históriajá está disponível por R$ 99,90 (preço de capa) e R$ 69,90 (eBook). Leia abaixo a íntegra do terceiro capítulo do livro, "De Menino a Bono".

De menino a Bono

Nasci com melodias na cabeça e estava à procura de uma maneira de ouvi-las no mundo.

Tenho pouquíssimas lembranças de minha mãe, Iris. Meu irmão, Norman, também não se lembra de muita coisa. A explicação simples é: depois que ela morreu, nunca mais se falou dela em nossa casa.

Temo que tenha sido pior do que isso. Raramente voltamos a pensar nela.

Éramos três homens irlandeses e evitamos a dor que sabíamos que viria ao pensar nela e falar sobre ela.

Iris, com seus cabelos escuros, rindo. Seu humor ácido. Rir na hora errada era seu ponto fraco. Meu pai, Bob, da parte pobre de Dublin, levou Iris e sua irmã Ruth ao balé, e acabou envergonhado com as risadinhas abafadas agudas como uivos que ela dava ao ver as marcas das coquilhas nos collants dos bailarinos.

Lembro que com 7 ou 8 anos eu era um menino malcriado. Iris correndo atrás de mim, agitando uma longa bengala que seu amigo Onagh Byrne garantiu que me disciplinaria. Eu, temendo pela minha vida enquanto Iris me perseguia pelo jardim. Mas, quando me atrevi a olhar para trás, ela estava rindo muito, sem levar um pingo de fé nessa disciplina medieval.

Eu me lembro de estar na cozinha, vendo Iris passar o uniforme escolar do meu irmão, o zumbido baixo da furadeira elétrica do meu pai no andar de cima, onde nosso pai faz-tudo estava pendurando uma prateleira que ele mesmo tinha feito. De repente, o som de sua voz, gritando. Um som desumano, animalesco. “Iris! Iris! Chame uma ambulância!”.

Corremos até a escada e o avistamos no topo, segurando a ferramenta elétrica, aparentemente tendo perfurado a própria virilha. A broca havia escorregado, e ele estava rígido com o temor de nunca mais ficar rígido novamente. “Eu me castrei!”, gritou ele

Fiquei em estado de choque ao ver meu pai, o gigante do número 10 da Cedarwood Road, caído como uma árvore. E eu não sabia o que aquilo significava. Iris sabia, e também ficou chocada, mas não era esse o olhar em seu rosto. Não, o olhar em seu rosto era o de uma bela mulher contendo o riso, e, depois, o olhar de uma bela mulher que não conseguia conter o riso à medida que aquilo tomava conta dela. O riso de uma garota ousada na igreja cujos esforços para não cometer sacrilégio só causam uma explosão maior quando tudo finalmente irrompe.

Ela pegou o telefone, mas não conseguiu ligar para a emergência; estava morrendo de rir. Meu pai se recuperou. O casamento sobreviveu ao incidente. E essa lembrança ficou marcada.

Iris era uma mulher prática. Ela mesma era uma faz-tudo. Sabia trocar o plugue de uma chaleira e costurar: cara, como ela costurava! Ela se tornou costureira em meio período quando meu pai se recusou a deixar que ela trabalhasse como faxineira na Aer Lingus, junto com suas melhores amigas da Cedarwood Road. Houve um grande embate entre os dois, a única briga de verdade de que me lembro. Eu estava no quarto tentando escutar o que diziam e ouvi minha mãe enfrentá-lo com um discurso furioso em defesa própria, dizendo “você não manda em mim”. E, para ser justo, ele não mandou. Mas a súplica teve sucesso no ponto em que a ordem havia fracassado, e Iris desistiu da oportunidade de trabalhar no aeroporto de Dublin.

Bob era católico; Iris, protestante. O casamento deles escapou ao sectarismo da Irlanda na época. E, como Bob acreditava que minha mãe era quem devia decidir sobre a instrução religiosa das crianças, nas manhãs de domingo, meu irmão e eu ficávamos com nossa mãe na igreja protestante de São Cainnech de Aghaboe, em Finglas. Depois, meu pai ia para a missa na igreja católica, mais acima na mesma rua. Que também se chamava São Cainnech de Aghaboe.

Cerca de um quilômetro separava as duas igrejas; mas, na década de 1960 na Irlanda, um quilômetro era muita coisa. Os “Prods” naquela época tinham os melhores hinos, e os católicos tinham o melhor equipamento de palco. Gavin Friday, meu vizinho de rua, costumava dizer: “O catolicismo apostólico romano é o glam rock da religião”, com suas velas e cores psicodélicas, suas bombas de fumaça de incenso e o som do sininho. Os Prods usavam mais os sinos maiores, porque, como Gavin disse, “eles podiam comprá-los!”.

Para boa parte da população na Irlanda nas décadas de 1960 e 1970, riqueza e protestantismo andavam de mãos dadas. Ser rico e protestante era ter compactuado com o inimigo — isto é, a Grã-Bretanha. Na verdade, a Igreja da Irlanda forneceu muitos dos insurgentes mais famosos, e ao sul da fronteira sua congregação era modesta em todos os sentidos. Meu pai era extremamente respeitoso com a comunidade eclesial com a qual se ligara por casamento e, então, depois de frequentar a missa sozinho um pouco adiante, ele voltava de sua São Cainnech para esperar do lado de fora da nossa São Cainnech até que sua esposa e seus filhos saíssem, e depois nos levava para casa.

Iris e Bob cresceram na parte pobre de Dublin, perto da Oxmantown Road, uma área conhecida como Cowtown porque às terças e quintas sediava a feira agropecuária. No Phoenix Park ali perto, Iris e Bob adoravam passear e ver os cervos correrem soltos. Algo incomum para um “Dub”, como os moradores da parte pobre da cidade eram conhecidos, Bob jogava críquete no parque, e a mãe dele, Vovó Hewson, ouvia a BBC para saber o resultado das partidas do English Test.

O críquete não era um jogo popular entre a classe trabalhadora na Irlanda. Adicione isso ao meu pai economizando para comprar discos de suas óperas favoritas, levando a esposa e a irmã dela ao balé — e depois proibindo Iris de se tornar uma “Moça da Limpeza”, como ele chamava, embora as amigas dela fossem —, e você talvez ache Bob um pouquinho esnobe. Os interesses dele não eram a norma na rua em que morava, sem dúvida. Na verdade, toda a família era um pouco diferente. Meu pai e o irmão dele, Leslie, sequer tinham o sotaque carregado de Dublin. Era como se sempre falassem com a voz que usavam ao telefone.

O nome de família do meu pai, Hewson, também é incomum, por ser ao mesmo tempo protestante e católico. Quando estive em um pub chique durante uma turnê no Reino Unido, uma vez vi o alvará da decapitação de Carlos I, que tinha um tal John Hewson entre os signatários. Um republicano? Bom. Um dos capangas de Cromwell? Ruim.

Quando criança, eu podia ver que os Hewson tendiam à introspecção, enquanto os Rankin pareciam mais à vontade consigo mesmos. Os Hewson eram dados a pensar demais. Meu pai, por exemplo, não ia visitar os irmãos e irmãs caso eles não quisessem vê-lo. Ele precisava ser convidado. Minha mãe — uma Rankin — dizia a ele para simplesmente ir. Seus parentes viviam aparecendo uns na casa dos outros. Qual é o problema? Somos família. Os Rankin riem o dia todo, e se os Hewson não são capazes de fazer o mesmo, ao menos temos um gênio que nos mantém entretidos.

Há outra diferença. A família Rankin é propensa a aneurismas cerebrais. Das cinco irmãs Rankin, três morreram disso. Incluindo Iris.

Minha mãe só me ouviu cantar em público uma vez. Interpretei o faraó no musical José e o deslumbrante manto de mil cores, de Andrew Lloyd Webber. Na verdade, tratava-se do papel de um imitador de Elvis, então, foi isso o que eu interpretei. Vestido de Elvis, fiz beicinho e trouxe a casa abaixo. Iris riu sem parar. Ela parecia surpresa que eu soubesse cantar, que eu levasse jeito para a música.

Quando era bem pequeno, na época em que minha cabeça ficava na altura do teclado, o piano me encantava. Havia um no salão paroquial, e todo tempo que eu conseguia ficar a sós com ele era considerado sagrado. Eu passava um tempão descobrindo o som de cada tecla, ou o que acontecia se eu pressionasse um dos pedais. Eu não sabia o que era ressonância; não podia acreditar que uma ação tão simples poderia transformar a nave da nossa igreja em uma catedral. Eu me lembro da minha mão encontrando uma nota e depois procurando outra para rimar com ela. E outra. Nasci com melodias na cabeça e estava à procura de uma maneira de ouvi-las no mundo. Iris não buscava esse tipo de sinal, por isso não viu.

Quando minha avó decidiu vender o piano dela, minhas insinuações sobre como ele ficaria bem na nossa casa não poderiam ter sido menos sutis. “Não seja bobo, onde a gente vai colocar isso?”. Nada de piano na nossa casa. Não tinha espaço.

Quando fui entrevistado na St. Patrick’s Cathedral, uma escola no centro da cidade, o diretor perguntou se eu teria algum interesse em fazer parte do famoso coral de meninos. Meu coração de garoto de 11 anos se animou. Mas Iris, sentindo meu nervosismo, respondeu por mim: “De jeito nenhum. Paul não está interessado em cantar.”

A St. Patrick’s Cathedral não tinha sido boa para mim, e eu também não fui bom para eles. A gota d’água foi uma professora de espanhol conhecida como Biddy, que eu estava convencido de que riscava o meu dever de casa sem nem olhar para ele. Quando o tempo estava bom, Biddy ia com seu Tupperware transparente até um banco de parque para almoçar à sombra da magnífica Catedral de São Patrício, a maior do país. Os meninos da escola St. Patrick’s não podiam ir ao parque na hora do almoço, mas encontrei uma maneira de subir nas grades e, um dia, com ajuda de alguns cúmplices, arremessei um cocô de cachorro que caiu dentro do Tupperware dela. Não surpreende que, no final daquele semestre, Biddy quisesse esse merdinha aqui o mais longe possível, e sugeriu-se que eu poderia ser mais feliz em outro lugar. Então, fui para a Escola Experimental Mount Temple.

A Mount Temple foi uma libertação. A escola era um experimento de educação mista e não denominacional, algo notável na época para a conservadora Irlanda. Em vez de classes A, B e C, as seis classes do primeiro ano eram D, U, B, L, I e N. Éramos estimulados a ser nós mesmos, a ser criativos, não usávamos uniforme. E tinha meninas. Que também não usavam uniforme.

O desafio eram as duas viagens de ônibus para chegar lá, a longa jornada ao centro da cidade do lado noroeste e depois para o nordeste. A menos que você pedalasse, que foi o que meu amigo Reggie Manuel e eu começamos a fazer. Foi em uma ladeira sem fim que aprendemos a segurar no caminhão de leite, e não sei se já me senti tão livre quanto naqueles dias pedalando para a escola com Reggie. O clima não permitia que andássemos de bicicleta o tempo todo e nos condenava ao trabalho penoso da viagem de ônibus, mas a compensação vinha às sextas-feiras, porque estaríamos no centro depois da aula e teríamos a chance de ir até a Dolphin Discs, na Talbot Street. A chance de olhar para capas de álbuns como Raw Power, dos Stooges, Ziggy Stardust, de David Bowie e Transformer, de Lou Reed.

A única razão pela qual eu não estava na Dolphin Discs às 17h30 em 17 de maio de 1974 é que uma greve de ônibus me fez ir de bicicleta para a escola. Já estávamos em casa quando as ruas ao redor da loja foram pelos ares com a explosão de um carro-bomba na Talbot Street; outro explodiu na Parnell Street, e mais um, na South Leinster Street, tudo em questão de minutos, em um ataque coordenado por um grupo extremista leal ao Úlster cujo objetivo era demonstrar ao Sul o que era terrorismo. Uma quarta explosão ocorreu em Monaghan, e a contagem final de mortos ficou em 33 pessoas, incluindo uma jovem mãe grávida, toda a família O’Brien, e uma francesa cuja família sobrevivera ao Holocausto.

Naquele mesmo ano, em Setembro, celebramos os cinquenta anos de casamento dos meus avôs maternos. Eles dançaram e cantaram ao som de Michael Finnegan. Meu avô, “Gags” Rankin, tinha se divertido tanto que os filhos temeram que acordasse à noite e não conseguisse chegar a tempo ao banheiro, então deixaram um balde ao lado da cama. Meu avô deixou esta vida chutando o balde, com um infarto fulminante na noite das bodas de ouro.

Três dias depois, no funeral, vejo meu pai carregando minha mãe nos braços em meio a uma multidão que se abre como quando a bola branca da sinuca acerta o triângulo de cores. Está correndo para levá-la ao hospital. Ela desabou ao lado do túmulo durante o sepultamento do próprio pai.

"A Iris desmaiou. A Iris desmaiou.” Minhas tias, meus primos. Suas vozes sopram como uma brisa por entre as folhas. “Ela vai ficar bem, ela vai ficar bem. Ela só desmaiou.” Antes que eu, ou qualquer outra pessoa, pudesse pensar ou piscar, meu pai já tinha colocado Iris no banco de trás do Hillman Avenger, com meu irmão Norman, ao volante.

Fico com meus primos para me despedir do meu avô, e então meio que acabamos voltando para a casa da minha avó, no número 8 da Cowper Street, com sua pequena cozinha que é uma fábrica de sanduíches, biscoitos e chá. O sobrado com dois andares superiores e banheiro externo parece abrigar milhares de pessoas.

Apesar de ser o funeral do vovô, e, apesar de Iris ter desmaiado, somos crianças, correndo de um lado para o outro, rindo com os primos. Até que Ruth, irmã mais nova da minha mãe, irrompe pela porta. “A Iris está morrendo. Ela teve um derrame.”

Estão todos reunidos. Iris é uma das oito crianças do número 8: tem quatro irmãs e três irmãos. Eles choram, uivam, tentam se manter de pé. Alguém percebe que eu também estou presente. Tenho 14 anos e estou estranhamente calmo. Digo às irmãs e irmãos da minha mãe que vai ficar tudo bem.

Três dias depois, Norman e eu somos levados ao hospital para nos despedirmos da nossa mãe. Ela está viva, mas mal. O pároco, Sydney Laing, cuja filha estou namorando, está presente. Ruth está do lado de fora do quarto do hospital, chorando, com meu pai, cujos olhos parecem ter menos vida do que minha mãe. Entro na sala de emergência em guerra com o universo, mas Iris parece em paz. É difícil imaginar que uma grande parte dela já tenha partido. Seguramos a mão dela e dizemos adeus. Soa um clique, mas não ouvimos.

Meu pai era um tenor muito, muito bom. Ele conseguia comover as pessoas com seu canto, e para comover as pessoas com a música, primeiro é você quem tem de se emocionar com ela. Vejo meu pai parado na sala de estar da Cedarwood Road, em frente ao aparelho de som com duas das agulhas de tricô da minha mãe nas mãos. Ele é o maestro. Regia Beethoven, Mozart e Elisabeth Schwarzkopf cantando as Quatro Últimas Canções de Richard Strauss. Agora, ele está ouvindo La Traviata de olhos fechados, perdido em devaneios.

Meu pai não sabe exatamente a história de La Traviata, mas pode senti-la. Pai e filho em desacordo, amantes que se afastam e se reconciliam. Ele sente a injustiça do coração humano. O dele é partido pela música.

Após a morte da minha mãe, a Cedarwood Road vai se tornando sua própria ópera. Três homens acostumados a gritar com a televisão e que agora gritam uns com os outros. Vivemos em meio à raiva e à melancolia; vivemos em meio ao mistério e ao melodrama. O tema da ópera é a ausência de uma mulher chamada Iris, e a música vai crescendo para manter o silêncio que envolve a casa e os três homens – um dos quais é só um garoto.

Meu irmão, Norman, sempre foi um solucionador de problemas do tipo mais prático, um engenheiro, um reparador, um mecânico de tudo ao redor, capaz de desmontar as coisas e remontá-las novamente. O motor da própria moto, um relógio, um rádio, um aparelho de som. Norman adorava tecnologia e música, e as duas coisas se juntaram no grande gravador de rolo cromado da Sony que ocupava um lugar de destaque em nossa “sala boa”. Norman era suficientemente empreendedor para descobrir que um gravador de rolo significava que ele não precisava continuar comprando música. Se pegasse emprestado um álbum de um amigo por uma hora, a música seria dele para sempre.

Como Norman, sete anos mais velho do que eu, já trabalhava quando eu estudava na Mount Temple, os rolos eram minha única companhia quando voltava da escola. Em alguns fins de tarde eu ficava com muita fome, mas absorto de mim e de onde estava. Assim como meu pai, eu ficava diante do aparelho de som e deixava a casa pegar fogo enquanto ouvia ópera. Tommy, do The Who. Uma ópera-rock. A fumaça de carvão enchia a cozinha e se infiltrava na sala de estar.

Norman me ensinou a tocar violão. Ele me ensinou o acorde de dó, o acorde de sol e, muito mais difícil, o acorde de fá, em que é preciso segurar duas cordas com um dedo. E é especialmente difícil quando as cordas estão altas em relação ao braço do violão, como era o caso no violão barato que ele tinha. Mas sob sua orientação aprendi a tocar “If I Had a Hammer” e “Blowin’ in the Wind”. Sozinho, aprendi “I Want to Hold Your Hand”, “Dear Prudence” e “Here Comes the Sun” no violão do meu irmão.

Norman e eu brigávamos muito. Ele voltava do trabalho e eu estaria assistindo TV, sem fazer meu dever de casa, sem ter preparado o lanche da tarde. Ele reclamava um pouco. Eu rebatia. Talvez um de nós acabasse no chão.

Ele tinha um temperamento difícil, mas era um garoto inteligente que, como o pai, devia ter frequentado a universidade. Norman ganhou uma bolsa de estudos para uma instituição muito bem-conceituada chamada simplesmente de High School, uma renomada escola protestante de ensino médio, com inclinação para matemática e física, mas famosa por ter sido a alma mater de William Butler Yeats. Mas Norman nunca se sentiu muito bem-vindo lá, com seu uniforme de segunda mão, seus livros de segunda mão e a religião de segunda mão de seu pai católico. Meu irmão era um otimista por natureza, exceto quando a melancolia o dominava. Quando isso acontecia, ele ficava realmente para baixo.

Meu rendimento escolar melhorou quando comecei na Mount Temple, e me saí melhor nas matérias do que na St. Patrick’s, mas, quando Iris morreu, perdi toda a concentração. Os professores lamentavam meus garranchos; as cartas que meu pai mandava a eles sobre mim tinham uma caligrafia tão bonita. Embora adorasse poesia e história, eu não me sentia tão inteligente quanto meus amigos. Eu estava com medo de, no fundo, ser mediano. Parei até de jogar xadrez. Eu adorava, mas parei porque comecei a achar que não era uma coisa “legal” e não tinha uma mãe para me dizer que nada considerado legal era “legal”.

Meu pai me ensinou a jogar xadrez durante algum verão em Rush, no litoral norte de Dublin. Vovô Rankin — o pai da minha mãe — tinha um velho vagão de trem que transformou em chalé de veraneio. Não havia muito o que fazer na “cabana”. Eu estava interessado no meu pai e, se ele não estivesse jogando golfe, lendo ou saindo com seus cunhados, eu tentava chamar sua atenção. Eu me lembro de caminhar pelo cais e do calor de sua mão em meu pescoço.

No começo pensei que ele estava me deixando vencer, mas acabei percebendo que não. Era assim que eu conseguia desviar a atenção dele daquilo em que estava pensando e colocá-la em mim. Ser melhor do que ele, ganhar dele! Bob não gostava de perder, e talvez tenha sido nessa época que descobri que eu também não.

Bob amava música, mas, afinado com minha mãe, ele também nunca sugeriu que tivéssemos um piano. E nunca me perguntou como estava indo meu progresso com a música. Ele adorava falar sobre ópera, mas não com os filhos. Após a morte de Iris, por anos ele faria nossos familiares se debulharem em lágrimas em reuniões de família ao cantar “For the Good Times”, de Kris Kristofferson. Ainda me pergunto se ele estava cantando do ponto de vista da minha mãe “I’ll get along, and I’m sure you’ll find another” (“Eu vou ficar bem, tenho certeza de que você vai encontrar alguém”).

Certa vez ele me disse que eu sou “um barítono que acha que é tenor”. Um grande balde de água fria e bastante preciso. Eu também tinha verve artística, e artistas, acima de tudo, não gostam de ser ignorados. Talvez Bob não me levasse muito a sério quando eu era adolescente porque podia ver que eu mesmo já me levava bem a sério. Mas ainda sou capaz de ouvir a voz dele, na minha cabeça, especialmente quando canto.

Naquele tempo, quando eu me lembrava de comer, eu voltava da Mount Temple segurando uma lata de carne, uma lata de feijão e um pacote de purê de batata instantâneo. Cadbury’s Smash era comida de astronauta, mas comer aquilo não me fazia sentir como o “Rocket Man” de Elton John. Na verdade, me alimentar daquilo não tinha muito a ver com comer. Mas pelo menos era fácil. Você coloca água fervente nas bolinhas secas e elas se transformam em purê de batata. Eu as colocava na mesma panela em que tinha acabado de cozinhar o feijão enlatado. E a carne enlatada. E comia meu jantar direto da panela.

Até hoje não gosto de cozinhar, nem de pedir comida, o que pode ter a ver com o fato de ter sido obrigado a preparar minhas próprias refeições quando adolescente. Um tempo em que a comida era mero combustível. Costumávamos comprar um refrigerante barato chamado Cadet Orange porque tinha açúcar suficiente para nos dar energia, mas tinha um gosto tão ruim que tirava a vontade de comer ou beber por horas. Bebíamos aquilo depois que eu tinha gastado meu dinheiro da comida em algo mais importante — como o compacto Hello Hooray, de Alice Cooper, por exemplo. Às vezes, uma compra musical dessas — Abraxas, do Santana, ou Paranoid, do Black Sabbath — exigia que eu investisse o dinheiro das compras de mercado da família toda. Nessas ocasiões, confesso, às vezes eu tinha que pegar emprestado todos os itens da lista de compras… sem devolver nada depois. Era fácil… exceto pelo pão de forma, difícil de esconder na jaqueta. Mas eu não me sentia bem fazendo isso, e aos 15 anos, larguei minha vida de crime.

Em 1975, Norman conseguiu um emprego no aeroporto de Dublin. Os aeroportos na década de 1970 eram ainda mais glamorosos do que a televisão em cores, especialmente se você fosse piloto. Norman tinha tentado se tornar a piloto, mas sua asma o desqualificou para o programa de treinamento, e, em vez disso, ele acabou arrumando um emprego na Cara, o departamento de computação da Aer Lingus, a companhia aérea nacional. Computadores, Norman disse a si mesmo, eram ainda mais glamorosos do que aeroportos, e ele se comprometeu — assim que ganhasse algum dinheiro — a aprender a pilotar aviões pequenos.

Milhares de irlandeses obcecados por aeronaves apareciam no aeroporto de Dublin todo fim de semana para ver máquinas voadoras desafiando a gravidade, decolando para outro lugar. Cada voo era um lembrete subconsciente de que havia uma saída da Irlanda, caso necessário. Nas décadas de 1950 e 1960, mais de meio milhão de irlandeses compraram passagens só de ida para fora do país.

A parte boa para papai, Norman e eu no número 10 da Cedarwood Road, a apenas três quilômetros do final da Pista 2, foi que Norman conseguiu convencer seus chefes na Cara a permitir que ele levasse para casa o excedente de comida preparado para os passageiros da Aer Lingus. As refeições às vezes ainda estavam quentes quando ele as trazia em suas latas para nossa cozinha, para serem aquecidas no forno por 23 minutos a 185 graus Celsius. Era um cardápio altamente exótico: bife de pernil e abacaxi, um prato italiano chamado lasanha, ou um outro em que o arroz não era mais uma sobremesa com leite, e sim uma experiência salgada com ervilhas. Eu disse a Norman que aquela era a pior sobremesa que eu já tinha comido.

“Não é sobremesa, e, a propósito, metade do mundo come arroz todos os dias.”

Norman sabia coisas que outras pessoas não sabiam. Se meu pai e eu estávamos orgulhosos por Norman ter eliminado a necessidade de comprarmos comida ou mesmo de cozinhar, depois de seis meses só conseguíamos lembrar do sabor residual metálico das latas. Secretamente, à noite, passei a comer cereal de milho com leite gelado em vez da comida do avião.

Achei que a salvação tinha chegado na forma de outro milagre culinário, desta vez na Mount Temple, quando o fim da era da comida da lancheira foi anunciado e começou a era das merendas escolares. Imagine uma fanfarra de trombetas e aplausos dos ali reunidos; foi esse nosso grau de empolgação. Mas minha festa durou pouco. A merenda, explicou o diretor, não seria feita na cantina da escola. Ela não era grande o suficiente. Em vez disso, chegaria de van em latas… do maldito aeroporto de Dublin! Seria aquecida, ele anunciou com orgulho, a 185 graus por 23 minutos, em fornos novos que a diretoria havia comprado.

Eu nunca tinha andado de avião, mas meu romance com a aviação já tinha acabado. Comida de avião para o almoço e comida de avião para o jantar era mais do que qualquer aprendiz de astro do rock poderia suportar. Com o tempo, eu e a banda tomaríamos os céus, e naqueles primeiros voos da Aer Lingus eu olhava pela janela do avião e tentava ver a Cedarwood Road. Quando finalmente deixei a pequena cidade e a pequena ilha e sobrevoei suas planícies, seus subúrbios monótonos, minha mente se encheu de lembranças da cabine telefônica na rua, de adolescentes com garrafas e corações partidos, de vizinhos amáveis e amargurados, e dos galhos vibrantes da cerejeira em frente à nossa casa. Nesse momento, a comissária chegaria para colocar uma das pequenas bandejas de lata bem na minha frente.


Fonte: Rolling Stone

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Em biografia, Bono conta bastidores do U2, assume erros e detalha drama de saúde

Com 600 páginas, 'Surrender: 40 músicas, uma história' chega às livrarias de vários países hoje, 1 de novembro, incluindo o Brasil.

Dos grandes astros do rock da História, talvez mais do que a todos, tenha cabido a Paul Hewson, o Bono, as acusações de ser alguém que aspirasse a santidade. Além de ser o cantor que, à frente do grupo U2, há décadas vem arrebatando o público com canções que inspiram um fervor religioso, como “I still haven’t found what I’m looking for” e “Gloria”, ele também é o sujeito que usou a fama como instrumento para atrair a atenção dos poderosos do planeta, iniciar ações políticas e levantar recursos para causas como o combate à Aids e à pobreza extrema.

Um tanto disso, o leitor encontra em “Surrender: 40 músicas, uma história”, que chega hoje às livrarias de vários países — inclusive o Brasil, pela editora Intrínseca, em tradução de Rogerio W. Galindo. Mas, ao longo de suas mais de 600 páginas, o que a aguardada autobiografia de Bono faz mesmo é usar o mote das 40 canções para organizar em capítulos temáticos as memórias do rockstar irlandês de 65 anos, católico, casado há 40 e pai de quatro filhos, no que elas têm de mais humano — embora o espiritual não seja perdido de vista.

“Sempre amei músicas grandiosas. As músicas são minhas preces”, escreve ele, que formou o U2 ainda adolescente, com os músicos que mais de 40 anos depois ainda seguem na banda: o guitarrista The Edge, o baixista Adam Clayton e o baterista Larry Mullen Jr.. Ao longo das páginas, ele abre confessionários e assume os próprios erros, como o de embarcar na chamada “síndrome do Messias branco” e bater no fã que pegou a sua bandeira pacifista num show do U2 na Los Angeles Sport Arena, em 1983.

Com bastante humor, Bono conta de quando tentou convencer — com sucesso — a Apple a distribuir a seus clientes, sem que eles tivessem solicitado, cópias digitais do álbum de 2014 da banda, “Songs of innocence” (2014) — meio como se ele fosse “uma garrafa de leite” deixada como um mimo na porta dos desavisados. “Como disse um gênio da mídia social: ‘Acordei hoje e encontrei Bono na cozinha, bebendo meu café, vestindo meu roupão, lendo meu jornal’”, ironiza(-se) o músico.

Um dos momentos mais reveladores de “Surrender” é quando ele recorre de fato a um confessionário — em 2002, numa igrejinha na França — para pedir perdão ao pai, que havia morrido de câncer. Aos 14 anos, Bono perdeu a mãe, Iris, para um aneurisma cerebral, e sempre se queixou de que Bob, um fã de óperas, não soubera criá-lo. “Já ouvi falar de pessoas que saem do confessionário livres do peso que carregavam. O que mudou para mim foi a minha voz. Senti que consegui alcançar algumas notas a mais; senti que estava me tornando um tenor de verdade”, escreve.

“Surrender” tem lá os seus momentos dramáticos — como a da cirurgia para corrigir um problema na aorta em 2016 (em “Lights of home”, a canção/capítulo que abre o livro); a crise de fé do vocalista, que quase levou ao fim da banda em 1982; e o clímax do alcoolismo de Adam Clayton, em 1993, durante temporada do U2 em Sidney — o baixista não apareceu para a passagem de som e descobriu-se que ele estava trancado, inconsciente num quarto de hotel, após uma farra descomunal.

Mas o que o livro de Bono oferece de mais delicioso mesmo é a história dos sonhos de adolescentes pobres, em uma Dublin sacudida por atentados terroristas (que deixaram traumas sérios em um dos melhores amigos do cantor, Andrew) — garotos para quem o punk rock era a redenção. Em “Out of control” (capítulo que leva o título da canção feita pelo vocalista aos 18 anos), ele fala da importância dos Ramones, com sua “complexidade muito mais relevante para a minha vida que ‘Crime e castigo’, de Dostoiévski”.

Outra banda importante foi a inglesa Clash: “Quando os vimos tocar na Trinity College em 1977, em Dublin, foi como um convite para sair da plateia e subir ao palco”, conta Bono, que, a partir daí, chegou a Larry Mullen Jr. (o cara que publicou o anúncio “baterista procura músicos para formar banda”), David Evans (The Edge, que criou com o U2 um dos mais influentes estilos minimalistas de guitarra) e Adam Clayton, sobre quem o cantor diz: “Ele tinha o estilo, a atitude, a ambição. O único problema é que não sabia tocar.”

'Vivemos intensamente todos os clichês'


Estereótipos do rock nunca foram lá muito apreciados por Bono e por seus colegas do U2. “‘Sex & drugs & rock’n’roll’” (‘Sexo & drogas & rock’n’roll’) era uma música de Ian Dury que todos amávamos, mas, verdade seja dita, não sabíamos do que se tratava isso”, relata em “Surrender” esse músico que tinha o plano de “trazer a grandiosidade para o punk rock” e alimentava uma fascinação por tudo que se referisse aos Estados Unidos: “A Irlanda é um grande país, mas não é uma ideia. A Grã-Bretanha é um grande país, mas não é uma ideia. A América é uma ideia. Uma ótima ideia.”

No capítulo “Desire” (música de um de seus álbuns mais americanos, “Rattle & hum”, de 1988), Bono fala com entusiasmo de Los Angeles, cidade “onde os arquitetos das décadas de 1950 e 60 tiveram mais liberdade de criação do que em qualquer outra cidade, à exceção de Brasília” e onde eles foram morar no auge do sucesso, capitulando aos estereótipos do rock: “Vivemos intensamente todos os clichês. Andar de moto e beber tequila, às vezes ao mesmo tempo.”

Ativismo

Mais do que uma estrela de rock, aos poucos Bono foi se tornando uma celebridade que o ativismo político aproximou de grandes figuras da política, como Nelson Mandela, Angela Merkel e os presidentes americanos Bill Clinton e Barack Obama. Quem ele nunca suportou foi Donald Trump —a ascensão ao poder do empresário provocou-lhe engulhos. “Trump começa o seu reinado de mentiras compulsivas com uma imagem recortada do Mall, mostrando o lugar abarrotado de gente, sendo que, na verdade, a lotação mal chega a três quartos do total”, escreve no livro. “Entendemos que tínhamos entrado em uma outra dimensão da vida americana.”

Entre coquetéis e gabinetes, o cantor desempenhou com gosto o papel de ponte entre as diversas instâncias políticas no combate à pobreza mundial. “Nunca escondi essa vida paradoxal que acabei indo viver, de astro do rock super-remunerado que fica batendo na tecla das condições de vida dos mais pobres”, conta ele, um cara bem relacionado com milionários como Bill Gates e Warren Buffett.


Fonte: O Globo

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