Ora pro Bono: Líder do U2 não é santo, mas também não é um diabo tão feio quanto pintam

O destino de todo messias é o calvário. Chegou o dia do julgamento para Bono, cantor da maior banda do planeta, o U2, o único roqueiro com pretensões a líder mundial e odor de santidade. O livro The Frontman, do jornalista irlandês Harry Browne, eviscera as pretensões geopolíticas de Bono, ridiculariza sua megalomania, expõe compromissos espúrios com canalhas diversos. É preciso nos fatos, mas muito na vida é interpretação.

Frontman significa “líder de banda”, mas também “testa de ferro”. Browne fala menos de música que de política. O livro é da Verso, editora radical. O pecado de Bono? Ser “o frontman ideal para um sistema de exploração imperial, cuja devastação permanece tão selvagem como no passado”. Permanece mesmo? Quando o U2 começou, em 1975, América Latina, Ásia e África eram dominadas por ditaduras. O mundo desde sempre muda, lenta e irrefutavelmente, para melhor. Mas será que o bom-mocismo de famosos mais atrapalha que ajuda?

Colunistas que comungam do radicalismo de Browne aproveitaram o livro para crucificar Bono: Terry Eagleton, decano da esquerda britânica, o colunista George Monbiot, o crítico musical Dave Marsh. Este chama Bono de “mascote do neoliberalismo”.

A premissa principal é que as atividades de Bono só servem para dourar pílulas amargas, e mantém intocadas as principais injustiças. Mas cobrar que o U2 seja os Sex Pistols ou o Clash é erro. O quarteto cresceu pobre e católico na Irlanda dos anos 70. Sua música clama por abrigo e redenção. Diferente de Johnny Rotten, Bono diz não à anarquia, fantasia da classe média. A classe trabalhadora que ascende quer segurança.



O U2 é uma empresa. Bono é seu CEO. Os produtos são os shows e o catálogo de discos, 150 milhões de cópias vendidas de 1980 para cá. A banda não faz um disco decente há 13 anos, e um relevante, há 20 (All That You Can’t Leave Behind e Zooropa, respectivamente). Não importa. O repertório de hits eternos banca turnês mundiais periódicas e milionárias. A última durou dois anos, 2009–2011. É o recorde de espectadores e faturamento da história: 7,2 milhões de pessoas viram os shows, todos esgotados, total de R$ 736 milhões de bilheteria.

Empresas precisam garantir a seus consumidores que estão preocupadas com algo fora lucro. Não quer dizer que seus executivos não sejam sinceros em sua solidariedade com os mais necessitados. Muito menos que estejam dispostos a colocar seus lucros em risco. Esse é o jogo do capitalismo, que jogamos todos, em graus diversos.

A lista de causas que o U2 apoiou é longa e sofrida. Anistia Internacional, Live Aid, War Child, campanhas contra o apartheid, pelas crianças de Chernobyl, para levantar fundos para HIV-positivos, pelos afetados pelo Katrina, pelo cancelamento da dívida dos países mais pobres, e por aí vai. Foi nessa última que Bono passou mais vergonha, confabulando com Bush, Blair, João Paulo II. Em 2002, o cantor cofundou a Data, instituição para ajudar a África a sair da miséria, que Browne descarta como paternalista.

Quando Bono bate palmas num show, e diz “a cada palma minha, morre uma criança na África”, de fato faz pornografia da miséria. Quer nos encher de culpa, que apaziguaremos assinando um cheque para sua ONG. Claro que a fome das criancinhas africanas não é criação sua ou minha. Mas a privatização dos problemas coletivos cresce dramaticamente nos quatro cantos do planeta, e não por acaso. Os Estados arrecadam de todos e transferem o grosso para o big business. Caem os investimentos em educação, saúde, saneamento. O abacaxi tem que ser repassado para alguém. Você aí, com a consciência pesada.

Ser ao mesmo tempo celebridade e campeão dos oprimidos requer muito autoengano. Recentemente, Bill Gates mostrou como compartimentar os bons sentimentos. Aposentado da Microsoft, se dedica a doar sua fortuna para boas causas, US$ 50 bilhões, a maior parte para educação e saúde em lugares miseráveis. Há pouco tempo assinou artigo indignado, denunciando que a indústria farmacêutica investe muito mais para descobrir a cura da calvície do que da malária. Bidu: as empresas querem ganhar o máximo de dinheiro, têm acionistas, como a Microsoft, certo? O que propões, Bill, a coletivização da produção de remédios? Que tal fazer o mesmo com a indústria de software? Ou da música, Bono?

É fácil e fútil zombar de Gates ou Bono. Tudo indica que o cantor é mitômano e sociopata. Como Dylan, Jagger, Bowie: ninguém mantém o equilíbrio após décadas de paparicação e idolatria. Bono é o louco mais perigoso, pois se imagina simultaneamente Elvis e São Francisco. Até agora conseguiu equilibrar a auréola nos óculos escuros, e fazê-la ornar com a jaqueta de couro, milagre marqueteiro que sobreviverá a esse livro.

Acreditar que famosos e poderosos vão resolver nossos problemas, ou os do mundo, é passar recibo de trouxa. Mas faz sentido jogar no lixo os esforços humanitários de Bono? Se sim, sejamos coerentes e mandemos para o mesmo ralo as iniciativas de todos os outros famosos, e aliás que vá pro inferno todo esse universo de ONGs, Oscips, fundação isso e instituto aquilo.

É compreensível a revolta dos críticos de Bono. Há de fato um movimento forte para que o Terceiro Setor assuma obrigações que são do Estado, ao qual precisamos resistir. Mas na prática Bono dedica seu tempo, dinheiro e voz ao que bem entender, e, se muita gente que sofre ganha algo com isso, ótimo. Afinal, o que Paul McCartney ou Madonna fazem por quem mais precisa? Ou, para ficar nos dinossauros aqui da terrinha, Caetano, Gil, Chico e Roberto Carlos? Bono pode ser santo do pau oco. Mas não é diabo tão feio como o livro pinta.

Fonte: Estadão


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